domingo, 5 de julho de 2009

a estação do inverno


_coitado! vive tão sozinho, não tem nada no mundo...

enganava-se a rosa-chá quando pensava que o gato malhado vivia solitário e não tinha nada no mundo. bem ao contrário, ele tinha um mundo e recordações, de doces momentos vividos, de lembranças alegres. não vou dizer que fosse feliz e não sofresse. sofria, mas ainda não estava desesperado, ainda se alimentava do que ela lhe havia dado antes. triste no entanto, porque a felicidade não pode se alimentar apenas das recordações do passado, necessita também dos sonhos do futuro...

jorge amado - o gato malhado e a andorinha sinhá




no espaço de um quase, cabem tantas conversas. olha nós dois: o quase é a ilusão da proximidade mas o longínquo, essa demência, ressoa melhor.

quando eu chego em lágrims tensas e ninguém me diz que eu preciso florir, quase é o espaço entre as ocupações, entre a lágrima e a sombra. o quase não tem ritmo, nem rima, só cor de talvez inacabado.

o quase enche o vazio com irmãozinhos barulhentos. o quase é fio da madrugada sem lua balançando sonhos, quase não é tristeza embora o quase me faça chorar. mas a saudade também faz. e o não ter rumos, isso não é nada bom.nem quase.

o quase é uma prisão.



tanta coisa que eu não sabia. nunca tinham me falado, por exemplo, deste sol duro das três horas. também não me tinham avisado sobre este ritmo tão seco de viver, desta martelada de poeira. que doeria, tinham-me vagamente avisado. mas o que vem para a minha esperança do horizonte, ao chegar perto se revela abrindo asas de águia sobre mim, isso eu não sabia. não sabia o que é ser sombreada por grandes asas abertas ameaçadoras, um agudo bico de águia inclinado sobre mim e rindo. e quando nos álbuns de adolescente eu respondia com orgulho que não acreditava no amor, era então que eu mais amava; isso eu tive que saber sozinha. também não sabia no que dá mentir. comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tao precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim. e tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. e isso - já atordoada eu sentia - isso era dizer a verdade. até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.

clarice lispector - aprendendo a viver

Um comentário:

  1. "...quase é o espaço entre as ocupações, entre a lágrima e a sombra. o quase não tem ritmo, nem rima, só cor de talvez inacabado."


    poxa. nem sei o que dizer de tão bonito e tão sincero que é isso.

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