segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

outros verões




É... mas tenho ainda muita coisa pra arrumar
Promessas que me fiz e que ainda não cumpri
Palavras me aguardam o tempo exato pra falar
Coisas minhas, talvez você nem queira ouvir


Já sei olhar o rio por onde a vida passa
Sem me precipitar e nem perder a hora
Escuto no silêncio que há em mim e basta
Outro tempo começou pra mim agora

quinta-feira, 5 de junho de 2008

do Livro do desassossego.




o coração, se pudesse pensar, pararia.

considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. não sei onde me levará, porque não sei nada. poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero. para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

fernando pessoa

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Outras leituras



Em branco e preto. Foram sonhos tolos, não preciso da voz alheia pra reconhecer. Embora insista em não ouvir nenhuma. Não sei onde foi que perdi meus anés desbotados e meus bordados desfeitos linha por linha... Havia qualquer coisa que antes me deixava respirar ao menos. Pensei ser possível tudo. Vi e quis. Além do aqui? O que não caberia em minhas mãos? O caminho sempre pareceu longo, torto, impossível de acompanhar todo, pq a vida não é planilha de arquiteto insone. Foram-se. Fui.

O sorriso dos lábios é só disfarce, como ouvi, o vento também alardeia cantos, mas na verdade lamenta sua tragédia interior
...



Há sem dúvida quem ame o infinito,
há sem dúvida quem deseje o impossível,
há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,
porque eu desejo impossivelmente o possivel,
porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
ou até se não puder ser.


(Álvaro de Campos, Trecho de "O que há em mim é sobretudo cansaço")








segunda-feira, 26 de maio de 2008

Anunciação

A história de um livro não escrito, princípios de rascunhos aleatórios guardados e esquecidos em uma gaveta velha.
O desejo longo de um grito mudo. Entrega e renúncia das particularidades anônimas que atravessam os dias, as vozes, os sonhos, os acontecimentos imprevisíveis.
Inútil e vago, como um sonho que se perdeu com a chegada inexorável da manhã.
Passos incertos de quem nunca aprendeu a andar.
Acúmulos de esperanças.
[Perda de muitas delas]
Mesmo que ninguém se dê ao trabalho e acompanhar, a vida marcha, pomposa e tola como os tiranos, em direção ao vazio absoluto.
Em minha defesa? Apenas palavras...





quarta-feira, 14 de maio de 2008

Extra-vaza-mento [ ou do porquê de tudo].









Esta velha angustia,
Esta angustia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.


Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.


Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.


Estou assim...


Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.


Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.


Se eu pudesse crer num manipanso qualquer –
Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro pintado!




Álvaro de Campos