quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

quarta feira de cinzas




2009

A POSTERIDADE NOS JULGARÁ

Quando for descoberto o remédio preventivo contra a gripe, as gerações futuras nunca mais poderão nos entender. Gripe é uma das tristezas orgânicas mais irrecuperáveis, enquanto dura. Ter gripe é ficar sabendo de muitas coisas que, se não fossem sabidas, nunca precisariam ter sido sabidas. É a experiência da catástrofe inútil, de uma catástrofe sem tragédia. É um lamento covarde que só o outro gripado compreende. Como poderão os futuros homens entender que ter gripe era uma condição humana? Somos seres gripados, futuramente sujeitos a um julgamento severo ou irônico.

Clarice Lispector - Aprendendo a viver.



[ANTERIORIDADES]



O mar, o vasto mar nos consola os labores!
Que demônio dotou o mar, roufenho canto
Perene a acompanhar os ventos rugidores,
Da sublime função de sublime acalanto?
O mar, o vasto mar nos consola os labores!

Baudelaire





arrebentam-se nas pedras negras da minha dor os desejos contraditórios de que me alimentei enquanto dormia. ações aleatórias e irrefletidas, como a da criança despreocupada que vê a maré levando suas sandálias e não reage, sabendo-se incapaz de enfrentar a traquinagem astuta do mar. vi, mas fiquei imóvel, esperando um não-sei-quê me socorrer. a ajuda não veio, obviamente.

ao menos aprendi algumas coisas incomunicáveis, relacionadas às vontades, intuições, sentimentos invisíveis e verdades indigestas. por um lado, há que se ter coragem de se assumir o que se sente. e mais ainda de renunciar a uma possibilidade de alegria [regada com todo o carinho poético a que sempre me declarei destinada] ainda púbere embora prometessem viger no tempo do sempre. por outro lado, a vida real que bate à porta, repleta de bagagens aos pés, me solicita uma decisão: coragem de ser já agora o que, mesmo inconfessadamente, temi, o reconhecer-se concreta, ativa, pensante, construtora, adulta.

é uma decisão difícil: a poesia trasvestiu-se de cotidiano fenomenal, com ela ganho sabores e risos, mas perco as cores do amor; a realidade enfeitou-se com um fascínio irracional e delicioso do amor, mas perco a leveza da sincronicidade, a doçura lírica do cuidar fraternal.

meus passos são tentativas ocas de reajeitar as coisas. a dor, porém, é inevitável.

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